A ideia de entrevistar Liudmila Petruchévskaia veio naturalmente, logo após terminar de ler “Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha”, primeiro livro da autora publicado no Brasil (pela editora Companhia das Letras e traduzido direto do russo por Cecília Rosas).
Como afirmo em uma das perguntas, os contos de “Era uma vez…” mais parecem misturar fantasia com realidade, em vez do contrário. Nesse caso, a ordem dos fatores altera, sim, o produto. Há uma grande diferença entre ler uma história cujo cenário é real, verossímil, e de repente deparar com um elemento fantástico, e ler um conto cuja atmosfera, desde seu início, é soturna, misteriosa, às vezes beirando o místico, e de repente a realidade vir à tona, puxando o nosso tapete. Assim são os contos de Liudmila.
São contos fantásticos, apesar de a realidade estar lá, muito presente, viva. E o estranhamento que essa mistura em ordem e dosagens diferentes causa no leitor é muito marcante. Os contos de Liudmila são encantadores, mas num sentido quase perverso. Mas faço questão de frisar: eu escrevi “quase”, porque os contos de Liudmila também são maravilhosos, de extrema qualidade literária. E, como diz a autora numa das respostas abaixo, são muito simples.
Na entrevista que você lerá a seguir, Liudmila fala sobre sua passagem por sanatórios quando criança, por causa de uma tuberculose; sobre a censura que sofreu, e ainda sofre, na Rússia; sobre de onde vêm suas histórias; dá uma alfinetada em Nabokov e outras coisas mais.
Não seria possível entrevistar Liudmila sem a ajuda inestimável de J.G., sua agente literária. Quando entrei em contato, por e-mail, com J.G., perguntei se a autora poderia conceder uma entrevista em inglês. Ela respondeu que não, mas que eu poderia enviar as perguntas em inglês, ela traduziria para o russo, Liudmila responderia em russo, J.G. traduziria do russo para o inglês e me enviaria. Ou seja: sem J.G. esta entrevista talvez não fosse possível. A ela, fica aqui meu agradecimento público, externado mais de uma vez em privado.
Para encerrar este preâmbulo, uma curiosidade: quando fiquei sabendo que Liudmila Petruchévskaia seria uma das convidadas da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), pensei que J.G. pudesse vir ao Brasil acompanhando a autora, e enviei um e-mail perguntando se ela estaria aqui. A resposta foi negativa, e ela explicou que Liudmila seria acompanhada por um de seus filhos, Fedor, que, e agora vem a curiosidade, é apaixonado pelo Brasil, e é um dos maiores responsáveis pela publicação de Liudmila em nosso país.
Agora deixo você, caro(a) leitor(a), com Liudmila Petruchévskaia.
Vamos começar com a tradicional pergunta da Outros Ares: como e quando você começou a escrever? Em qual gênero escreveu as primeiras linhas?
Comecei a escrever aos 12 anos, num sanatório para crianças tuberculosas, longe de casa. Eu costumava abandonar ou perder tudo, era ridicularizada pelas crianças e até apanhei de uns garotos. Mas então, de repente, para a minha própria surpresa, escrevi um verso patriótico na véspera de um feriado nacional: “nós somos soviéticos e somos pela paz no mundo”. Passei a ser muito respeitada depois disso. Poetas patriotas geralmente são respeitados tanto pelas autoridades quanto pelas pessoas comuns. Mas isso aconteceu apenas uma vez. Depois disso, eu só escrevi textos pelos quais fui banida e censurada, e passei muito tempo sem ser publicada.
Em vez de misturar realidade com uma dose de fantasia, os contos de “Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha” parecem misturar o fantástico com uma dose de realidade. De onde veio sua inspiração para escrever essas histórias?
Eu tive tuberculose quando criança, e passei muito tempo da minha infância em diversos sanatórios. As meninas costumavam dormir na enfermaria, e era comum contarmos histórias assustadoras antes do anoitecer – muitas vezes sobre homens mortos e uma mão negra. Eu costumava contar essas histórias. Ninguém precisava ou desejava a realidade, porque a realidade era muito entediante: escola, caminhadas, disciplina. Essas histórias assustadoras eram uma maneira de fugirmos para um mundo diferente, para um mundo de mortes e salvações milagrosas.
Além de escritora, você é cantora, compositora e pintora. Lendo suas histórias, é possível ver nelas uma musicalidade e imagens, cenas que parecem ter sido pintadas. Existe mesmo uma mistura de artes em seus contos ou estou “inventando” isso?
Um crítico uma vez escreveu que meus contos são como poemas, versos livres. Uma vez tentei estruturar um de meus contos como se fosse um poema, e deu certo. No entanto, seria um poema muito longo. Eu ri de mim mesma. Poemas devem ser curtos, eu acho.
No início da sua carreira você teve livros censurados pelo governo. Poderia falar um pouco sobre isso? E como é ser uma escritora na Rússia de hoje? Até onde vai a liberdade artística na Rússia atualmente?
Fui alvo de censura durante toda a minha vida. Meu primeiro livro foi publicado quando eu fiz cinquenta anos. Recentemente um político exigiu publicamente que um livro meu fosse proibido. Nesse livro há uma história sobre adolescentes que são tentados pelo demônio para consumir álcool e drogas, então ele faz uma festa para esses jovens, que são curiosos por experimentar tudo, e ela acaba tragicamente com um incêndio (o título dela é “A Bug”*). O Ministério da Educação censurou o livro como uma obra que contém apologia às drogas, e agora ele não pode fazer parte do acervo de nenhuma biblioteca do país. Dei inúmeras entrevistas explicando a diferença entre falar sobre certas coisas e fazer propaganda delas, o que não é o caso da minha história, mas não tive sucesso.
[*Nota do Editor: para traduzir corretamente o título “A Bug”, seria necessário ler o conto, pois há vários sentidos para a palavra “bug” em inglês.]
“Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha” é o seu primeiro livro publicado no Brasil, e espero que outros sejam publicados logo, logo. Se você pudesse escolher os próximos dois livros seus a serem publicados aqui, quais seriam?
Eu escolheria a coletânea de contos “Two Kingdoms” (“Dois Reinos”) e a coletânea de histórias místicas para a família (de adolescentes a idosos) “The Testament of An Old Monk” (“O testamento de um velho monge”).
Quais escritores você mais lê? Quais autores mais te influenciaram?
Eu li os principais livros, russos e estrangeiros. Desde “A Ilíada” até os clássicos do século XX. E agora eu gosto de ler memórias, diários e, ainda que seja estranho, histórias de mistérios (de detetives). Recentemente publiquei dois novos livros com histórias de detetives: “Travellings On the Occasion of Death” (“Viagens em casos de mortes”) e “Kidnapped: The History of Crimes” (“Sequestrado: A história dos crimes”). Outra publicação recente é meu livro de memórias “The Little Girl from the Metropol Hotel” (“A garotinha do Hotel Metropol”), cujo título em russo é “Needed by No-One and Free” (“Necessária para ninguém e Livre”).
No Brasil, com algumas exceções, os contos não são populares entre os leitores, e nós – escritores, editores, jornalistas – não sabemos exatamente o porquê. E na Rússia? Os contos são populares entre os leitores?
Aqui é a mesma coisa. Os leitores preferem os romances longos. Eles gostam de mergulhar nas vidas de estranhos e “vivê-las” durante um tempo. Eu sempre escrevi contos. Contos são como uma facada no coração. Eu retrato a realidade horrível que chega a mim através dessas histórias. Pessoas que eu conheço sempre me contam histórias de suas vidas – extraordinárias, horríveis, como elas acontecem. Ninguém pensa em descrever sua rotina diária. Elas vêm e falam “Você sabe o que aconteceu comigo?”, e o que contam não tem nada a ver com suas rotinas. São incidentes que as descolaram de suas vidas ordinárias, incidentes com causas e efeitos, narrados por pessoas que encontrei no trem, por colegas de trabalho ou por meus vizinhos.
E lá estão: uma história de um homem que se matou depois de a esposa o abandonar; ou a história de uma garota que fugiu de casa depois que seu pai começou a estuprá-la (após a morte de sua mãe) e, nas ruas, foi forçada a se tornar prostituta. Eu conto, através de meus livros, uma história secreta da cobiça do meu país, uma verdadeira história do meu país. Escrevo de maneira muito simples, sem diálogos, sem comparações, metáforas, epítetos. Como se uma mulher contasse uma história a uma amiga. Ela não diria algo como “Era um lindo dia de primavera, o céu prometia brisa e sol, as árvores celebravam um casamento, rindo e dançando”. Ela diria “Olha, não sei, mas ela pode estar morta agora. Apesar de não terem acontecido funerais em nossa vizinhança recentemente”. É assim que começa o meu conto “A Girl, a World’s Consiousness” (“Uma garota, uma consciência do mundo”). Editores acharam a história tão assustadora que ela só foi publicada vinte anos depois de escrita. Esse é o meu destino: o destino de uma historiadora, fazendo anotações sobre o ontem. No entanto, a história se espalhou entre os leitores. As pessoas a digitavam em máquinas de escrever e compartilhavam secretamente.
A Rússia nos deu alguns dos maiores escritores de todos os tempos: Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov, Gógol, Górki, Turguêniev, Nabokov, Búnin… A lista é enorme. Em sua opinião, por que essa lista de grandes escritores russos é tão grande? Por que a Rússia tem uma tradição literária tão forte?
Isso acontece porque as pessoas sofrem. E porque os escritores têm consciências perturbadas. Porque os escritores querem revelar a verdade. No entanto, eu excluiria Nabokov dessa lista. Ele tem apenas um grande livro, “Other Shores” (“Outras margens”).
Para você, a literatura pode ser sinônimo de esperança? O que é a literatura, para você?
Para mim, literatura é como dar à luz a um filho. Você não pode cancelá-lo quando ele está nascendo. E o que meus filhos podem fazer no mundo é algo sobre o que eu não tenho poder.