[Eugenia Zerbini]
“– Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era.”
“A cartomante”, Machado de Assis
Cinco vogais. A estrutura de tudo, ou quase tudo. Pelo menos de muita coisa. Ao menos nas línguas latinas, em que cada sílaba é integrada no mínimo por uma vogal.
Esse começo seria outro se estivéssemos falando polonês, onde as consoantes se rebelam e se juntam em sindicatos para fazer comício. Cinco vogais, cinco cartas. A carta do meio, a questão. A da esquerda, o aporte do passado; a da direita, o futuro; a inferior, aquilo que se encontra subjacente à questão; a superior, por fim, o facho de luz que esclarece a jogada.
Desse jeito é que ensinam os manuais. Mas uma das regras que a vida me ensinou é que nem sempre as regras devem ser seguidas. Ainda mais a partir do instante em que você escuta aquele estalo e se dá conta que é possível ter certeza de quando segui-las ou não. Pode demorar um tempo (o que não foi o meu caso). Olhe, algo me diz que, neste momento, o importante é seguir a direção do olhar desses cachorros, que latem debaixo da Lua, olhos fixados para além dos muros e das duas torres.
– Eu vejo aqui uma mudança. Uma mudança significativa. Até imagino que você veio procurar resposta para ela.
A jovem mulher recebia esse alerta de um homem maduro, elegante. Um desses tipos bem familiares para os que frequentam os clubes de campo. Mocassins sem meia, calça cáqui, camiseta branca por baixo do suéter marinho folgado. Contidamente bronzeado no rosto. Os cachorros ladrando à luz da Lua. Ele sorria; a primeira vez que tivera uma premonição, ela fora tão arrebatadora que ele se afastara dos pais e se dirigira para uma desconhecida, em pleno saguão do Hotel Danieli, em Veneza. Catapultado por um impulso que nem ele entendia, avisou que ela não deixasse o marido e abrisse mão do outro homem. Senão, ela seria muito infeliz.
O outro será seu amante, nunca seu novo marido.
Os pais não entenderam. Dez anos, menino de tudo. Embaraçados, queriam morrer de vergonha. Pediram mil desculpas para a senhora. Ela manteve um sorriso impassível, prometendo desculpar a criança se os pais permitissem que ela o levasse para um giretto curto, só para tomar um sorvete perto dali. Ninguém ousou dizer não àquela altura, logo para ela, uma suíça dona de fábrica de relógio, hóspede do Danieli há anos, conhecida do gerente do hotel. Ela tomou o menino pela mão e saíram. Na verdade, à procura de um daqueles quiosques que vendem cigarros no entorno da Piazza San Marco. Lá venderiam também um baralho de cartas. Em seguida, foram apressados para o café Florian. Em uma mesa de canto, ele leu para ela as cartas do Tarocchi. Pela primeira vez na vida.
Deu-se conta então de que todo o segredo era investigar os detalhes, os gestos discretos, as expressões daqueles rostos pintados, aparentemente imóveis. Em que direção apontava o chapéu, os pés ou as mãos do personagem, a pata ou o rabo do animal e, principalmente, os olhos das figuras. Entre colheradas de sorvete de chocolate, advertiu que aquela mulher deveria procurar o marido o quanto antes. Ela estava grávida do amante, e ainda estava em tempo de o esposo enganado aceitar aquele fruto que começava a engoli-la por dentro.
Fitando o rosto da jovem que o consultava no momento, ele pressionou mais uma vez a tecla das mudanças. Os cachorros olhavam para o horizonte, além das torres, e estavam sob os raios lunares. Dos poetas e trovadores. Era assunto relacionado ao coração.
– Não, você está enganado. Vim aqui para saber sobre meu trabalho. Recebi uma proposta de mudança de emprego e estou em dúvida. Aceito ou não?
Para acreditar em mim, o que a mocinha deseja que eu faça?, que com um cigarro aceso, equilibrado no canto da boca, eu assuma um ar desafiador, cigano? Dou minha sugestão, que ela volte para casa, pegue uma folha de papel, liste os prós e contras do novo emprego, em coluna dupla, e que pondere o resultado depois. Bom senso, nada além disso. Agora, embora a moça nem tenha percebido, tem coisa nova entrando em sua vida amorosa. Que de resto é pobre, muito pobre, desértica. Quando me bate essa certeza, é seguro, mesmo. Ainda que eu continue a ignorar a origem dessa certeza. Como naquele dia em Veneza. Atribuo esse dom ao fato de ter dado meus primeiros passos no templo de Borobudur, na Indonésia. Meu pai era diplomata, a família sempre viajou muito.
E assim foi; mamãe, cansada de me carregar no colo, depois de ter circulado por todas aquelas plataformas, umas quadradas, outras redondas, representações do mundo dos desejos, das formas e das não formas, deixou-me recostado, às suas vistas, na base de um dos leões de pedra, sentinelas do templo dos 100 budas. Levantei e andei, feliz da vida, sob o olhar das gárgulas do local, ela gostava de repetir essa história, e hoje sou eu quem gosta de contá-la.
A moça inicia um discurso sobre sua experiência profissional, declama seu currículo e o sem número de planos para a carreira. Meu bem, ninguém está aqui para contratá-la. Fixando-a, com seus olhos claros ainda sonhando com Borobudur, ele estranha aquela mulher de ideias fixas. Poderia até achá-la bonita, se ela o escutasse. Nesses impasses, nada melhor do que oferecer um chá. Ele teria que alcançar a garrafa térmica com água quente e oferecer, além da xícara, a caixa com aquela infinidade de saquinhos individuais de aromas diferentes. Do Earl Grey e do Darjeeling ao Russian Caravan e ao Shanghai Breakfast, cada rótulo aguçando a imaginação, a dele e a da pessoa que o consultava.
Feia ou bonita?, indagava enquanto tomava seu chá. Inexpugnável, como as muralhas da antiga Babilônia (ou de Jericó?), zombavam as criaturinhas que giravam na Roda da Fortuna. Quantas mulheres ele teve na vida, quantas amou, em quantas línguas havia se declarado, com quantas outras o enredo resumiu-se a umas tantas loucuras sussurradas durante o sexo, não importa, a maioria das mulheres que teve entre os braços foi bonita, não que isso fosse vital para ele, espere um pouco, era importante, sim, sentia-se embaraçado em admitir, era importante estar com uma bela mulher, só que ele passava a ver beleza naquelas que o interessavam, como se seu interesse a transformasse, como uma varinha mágica (venha cá, ele nunca precisou de vara de condão, as fadas é que precisam, olhe para a anatomia dos magos, que nascem cada um com sua própria vara entre as pernas, dispensando qualquer outro simulacro para lançar de jeito eficiente suas magias). Os olhares dos cães que latiam haviam se definido por completo. Pairando acima dos muros no horizonte, o valete de copas.
Belo valete, por sinal. Na base de tudo, sustentando o jogo, a carta XI. A Força. Outra mulher, igual à consulente. Olhos votados para a direita. O futuro. Ela empreende um esforço enorme para manter aberta a boca de outro cão. Ou melhor, de um leão. Que nessas alturas jogara fora a juba e encolhera de tamanho, transmutado em canino.
– Estou certo do grande investimento de tempo, energia e dinheiro que você fez na sua carreira, mas eu acho que está no momento de você crescer em outra direção. Indo direto ao ponto, como raras vezes eu vou, está na hora de você cuidar do seu coração.
– Eu não tenho problemas de coração nem de saúde, eu quero esclarecer se…
A moça retomou sua ladainha profissional. Ela não o escutava. Figura obcecada, fugindo do próprio desejo. Passou pela cabeça dele colher um pedaço daquele orgulho obstinado e profissional. Flores brotam nos canteiros para serem colhidas. Calejado, entretanto, ele aprendera a se preservar. Vivia há tempos com uma mulher formidável, violoncelista profissional que tocava na sinfônica e numa orquestra de câmara. Ele simplesmente adorava a vida que levava com ela e seus colegas artistas, assistindo às apresentações nas salas de concerto, acompanhando-a nos jantares e nas conversas espirituosas após os ensaios. Tinham até instalado em casa um estúdio onde ela estudava e ensaiava. A vida colorida e meio boêmia com a qual sempre sonhou. Ele – graduado em Ciência Política por Paris (a mítica Science Po), que depois de tentar o exame para ser diplomata, como o pai, escolheu ser tradutor, trabalhou numa editora, depois fora marchand, mais tarde representante de uma casa internacional de leilões – se fixara. Recebeu a herança dos pais, o que garantia o básico. Tomando coragem de tomar partido de seu dom de criança, o extra ficara por conta das consultas. Uma agenda disputada no boca a boca. “A sorte afeta tudo. Deixe o anzol sempre lançado. No riacho mais improvável haverá peixe.” Quantos cartomantes podem citar Ovídio?
Sua mulher estava no teatro a essa hora, ensaiando o concerto para violoncelo e orquestra de Rautavaara, compositor finlandês contemporâneo. Ele com suas cinco cartas. A mulher com suas sete notas. A jovem que o consultava com uma única dúvida. Única e monocórdia.
Essa história seria uma não-história se narrada em polonês, língua perversa em que todas as consoantes do alfabeto disputam no tapa uma única sílaba. Também não poderia existir em finlandês, em que as vogais colam-se uma nas outras. Como gêmeas xifópagas, compartilhando o mesmo coração, mesmo fígado, mesma coluna vertebral. A mesma sílaba. Rautavaara. O sobrenome do compositor do concerto para cello que a esposa ensaiava. Einojuhani Rautavaara, colega de Paavo Heininen, os dois colegas de conservatório, em Helsinque, discípulos de Aarre Merikanto.
Nada mais tinha a dizer para aquela moça. O Louco, carta final, marcada no alto com o número zero, colocava fim à jogada em sua caminhada infinita, andando distraído em direção ao futuro, com os dentes do cão mordendo o fundilho das calças. O cão, de novo. Instinto e fidelidade. Ele devia fidelidade apenas a seu oráculo.
Levantaram-se ao mesmo tempo, depois que ele recolheu as cartas da mesa, guardando-as no maço. Ela estendeu o dinheiro do pagamento da consulta, disposto dentro de um envelope vermelho. Era exigência do tarólogo, anunciada quando do agendamento da consulta. A explicação, dizia ele, estava em um dos ensinamentos do Feng Shui. Vermelho multiplica o dinheiro. Na verdade, ele ainda lidava mal com o gesto de ser pago por algo que surgira em sua vida de modo tão inexplicável. Irracional. O gesto de receber o envelope com as duas mãos e com uma discreta mesura de cabeça supostamente agradecida inseria-se na liturgia do papel que ele representava. Naquilo que esperavam dele.
Acompanhou a moça até a saída. Será que ele deveria assobiar uma barcarola? Ao abrir a porta do elevador para ela, por um segundo ficaram muito próximos. Chegou a sentir o cheiro dos seus cabelos. Teve desejo de ao menos tocar-lhe com o indicador a testa. Afastou-se. Deu-se conta, então, que outro homem estava no elevador em que a jovem mulher entrava para ir embora. Escutou o último ladrar de um cão.
Comece a ler os contos escolhidos desta edição: “O busto do Edgar“.