Guardando roupa suja

Jaime Prado Gouvêa

Por mais que se dobre com jeito, que se tente a mesma arrumação de antes, não é a mesma coisa. As roupas sujas parece que incharam, além dos presentes das crianças e ainda o calção e a toalha dele secando no varal. A solução é levar o que não couber na mão mesmo, improvisar, fazer uns embrulhos, não tem importância, só depois de voltar para casa é que tudo se ajeita, sempre foi assim. A mala estufada sobre a cama, o lençol empurrado para os cantos escondendo marcas de pés e manchas de óleo de bronzear, ela vai até a janela e fica olhando o mar de vinte e cinco anos atrás onde, sem entender direito se o que estava ardendo era o sal ou a vontade de voltar para o quarto, ela estremeceu, cerrou os dentes de leve no rosto do marido e teve certeza que o amava.

Fez questão que tudo fosse igual desta vez, o mesmo chalé, a mesma praia. Fizeram de conta que não foi construído um bar ao lado e que o cheiro de peixe no lixo não os incomodava, ali mesmo onde havia um canteiro de grilos e jasmins que compunham a lembrança do homem ainda adormecido enquanto ela, despojada, ficava imaginando o tempo que teriam pela frente, imaginando com calma, alisando os desenhos da camisola de cetim, os pêlos do braço dele, um suspiro, ele está acordando e vem de novo para cima de mim, meu querido, tanto tempo se passou e essa mala estufada sobre a cama, cheia de roupa suja, e ele lá no bar se despedindo dos amigos, uma última rodada de truco, cerveja e batida.

Naquele tempo, foi champanha. Ele sempre gostou de comemorar os acontecimentos, talvez até acreditasse nisso, notava-se pelo ar solene com que festejou o casamento, nascimentos de filho e netos, a falência evitada com muita luta e novas dívidas, reconciliações que justificavam algumas brigas violentas, a volta difícil depois de um ano separados, ela sentindo o cheiro de bebida nas palavras moles dele, ele reparando suas rugas. Ela colocou a mesma camisola na mala e combinaram que tudo seria idêntico à primeira vez. Na noite em que chegaram, arrumaram as gavetas como na lua-de-mel, casando calção e maiô, calças e vestidos, a velha sandália florida com a de borracha. Com um sorriso malicioso, ele sobrepôs as cuecas e as calcinhas. Ela percebeu e o abraçou, mordendo de leve o rosto dele. Saíram para dar uma volta e viram que estava tudo construído em torno do chalé, o bar onde ele tomou um aperitivo e filou um tira-gosto e ela conversou com a proprietária, se era antiga ali, se se lembrava disso ou daquilo. Quando voltaram ao quarto ele tentou, ela se esforçou, mas o cansaço da viagem, mas as emoções do dia, apenas se beijaram e fingiram que vinte e cinco anos não haviam se passado.

Pois agora, recostada à janela, ela revia a antiga mala e o cuidado dele em retirar as peças de roupa e ajeitá-las no armário. Via o homem meio encabulado levando o pijama para o banheiro e demorando-se o suficiente para que ela pudesse se trocar também, apagar as luzes e deixar apenas o brilho da camisola refletir a penumbra do abajur se movendo na respiração contida. Está ali, presente, o seu homem: alto, na porta do banheiro, os cabelos molhados e penteados para trás, e ele já vem vindo, vem chegando, um perfume de alfazema nas mãos que ela beija pensando em valsas, romances, poemas e agora o pavor que corre subindo por suas pernas, empapando os dedos desajeitados dele.

Aquele mesmo gordo suado gritando truco no bar ao lado. Um ou outro palavrão, ela não quer ouvir, sai de perto da janela e resolve acabar de fazer a mala. Os presentes dos netos — ela resolve — vão na sacola da mercearia, para não pegar o cheiro ruim de roupa usada. Esta camisa de gola puída, é preciso jogá-la fora, mas é a preferida dele. Mania. Como o pé de meia que ela pega com as pontas dos dedos e embrulha numa folha de jornal. Bate o calção na beirada da pia para tirar a areia e nota alguns pentelhos presos à sunga de pano, o bafo amarelo de mijo velho.

Cheiros, bafos, essa mala cheia de roupa suja, é tudo que ocorre a ela, ainda que se esforce para lembrar que as coisas não deveriam terminar assim. Tantos anos depois de lambuzar de batom o pijama novo dele, de pedir desculpas por fazer tudo errado, de tentar limpá-lo com o lenço de linho bordado que lhe dera num dia dos namorados, ela está guardando na mala uma cueca que mostra um acentuado risco marrom no gancho. Algo que naquele tempo ela teria lavado com carinho e excitação, e ele nem ficaria sabendo. Naquele tempo. Agora vai tudo embrulhado junto com as bermudas, a camiseta com propaganda de caderneta de poupança, um bloco de batalha naval nem começado e revistas de palavras cruzadas, tédio. Além de calcinhas de renda, sutiãs com cinta, pomada para pele ressecada e a velha camisola que ela esfrega suavemente no rosto para enxugar uma lágrima que não vai sair, nem isso.

Ela se deita na cama, recosta a cabeça na mala e reconhece que aquele velho que se demora no truco com os amigos ocasionais bem que tentou. Deixou em casa as contas por pagar, a implicância com a marmita que nunca substituiu a habilidade dela com os molhos, o cansaço que ela alegava e a necessidade e o medo de operar as varizes, os óculos com armação de tartaruga e os cabelos ralos caindo na testa enquanto se debruçava sobre os livros de contabilidade da firma. Deixou para trás a lembrança dela saindo de casa com um curativo na testa por causa do copo que ele jogara durante mais uma briga, as muitas cartas começadas e amassadas na cesta de lixo com vergonha de que ela soubesse que se roía arrependido, o alívio silencioso quando ela voltou dizendo que era só pelo filho que já estava até noivo na época, e ele acreditou, aqueles dois velhos emburrados em frente à televisão, ele fazendo questão de lavar os pratos que usava e quebrando asas de xícaras, o mesmo bobão de sempre.

Que vem saindo do mar enquanto ela recosta a cabeça na cesta de vime e finge que está dormindo sob o guarda-sol. Olha por entre os cílios o corpo dele caminhando, as ondas sob o calção que ela conheceu ontem à noite na escuridão do quarto, tensa de tantos cuidados e expectativas, o terno e sacana conselho de mãe para filha. Um corpo manso e meio moleque apenas, a pele branca dos ombros já bastante avermelhada, vai arder à noite, ela tinha avisado. Como ardeu nela quando entrou na água, e ela falou que precisava sair porque estava frio, e ele sabia que era mentira, e passou as mãos sobre os cabelos dela, bem que ele tentou, como desta vez quando entrou no quarto sem que ela percebesse, achou que dormia com a cabeça apoiada na mala, parou um momento olhando seus cabelos embranquecidos, sentiu vontade de alisá-los de novo, sentiu a cerveja queimando no estômago, deitou-se ao lado dela sem se animar em acordá-la e ficou olhando para o teto, a vida inteira pela frente.

* “Guardando roupa suja” é um dos contos do livro “Fichas de vitrola & outros contos“. A revista Outros Ares agradece ao autor e à editora pela autorização em reproduzi-lo nesta edição.

Comece a ler os contos escolhidos deste mês: Sujeitos indeterminados.

Gente demais e qualidade de menos

Nascido em Belo Horizonte, em 1945, Jaime Prado Gouvêa é um dos mais talentosos escritores brasileiros contemporâneos. Seus contos – boa parte deles reeditados há pouco tempo no volume “Fichas de vitrola & outros contos” (Record, 2007) – misturam delicadeza e crueldade de uma maneira muito peculiar, rara de ser encontrada. Seu romance (um belíssimo romance, aliás), “O altar das montanhas de Minas“, também reeditado recentemente (Record, 2010), traz, além da já citada mistura, outras características da prosa de Jaime Prado: o humor refinado, sutil; a beleza e o lirismo; as referências literárias e musicais, que dão um quê de boemia a alguns de seus escritos.

Sobre “Fichas de vitrola…”, disse o jornalista e escritor Humberto Werneck: “Nada do que ele [Jaime] põe na tela, no papel, está ali por acaso ou descuido, nada escorregou dos dedos. Cada vírgula é capaz de justificar presença, e o que se busca, incansavelmente, não é menos que a perfeição.”

Sobre “O altar das montanhas de Minas”, disse o também escritor e jornalista Caio Fernando Abreu: “é um dos livros mais fortes, belos e comoventes que li nos últimos anos”.

Ambos estão cobertos de razão. Difícil encontrar – é um desafio, e talvez seja impossível – algo “sobrando” nos contos ou no romance de Jaime. Seus livros parecem alvos de uma quase interminável revisão, de uma incessante reescritura.

Na entrevista abaixo, o autor, que atualmente é superintendente do Suplemento Literário de Minas Gerais, fala sobre o início de sua carreira, nos anos 1970 e, claro, sobre a literatura brasileira contemporânea.

Outros Ares: Vamos começar com a já tradicional pergunta inicial aqui da Outros Ares: como e quando você começou a escrever? Em qual gênero você arriscou suas primeiras linhas? Chegou a cometer poesias?

Jaime Prado Gouvêa: Paulo Mendes Campos disse certa vez que “o adolescente não é um poeta, é uma vítima da poesia”. Concordo com ele. Também fui vítima disso e cometi uma série de poemas necessariamente juvenis que ainda hoje me acusam do fundo de uma gaveta, mas que, como muito tempo depois desconfiei, serviram de exercício de linguagem, de controle da sonoridade do texto, de concisão e síntese, de harmonia, exercícios que, acredito, me ajudaram a ter um texto mais maleável do que o de muitos escritores que nunca se aventuraram nas dificuldades de compor um verso. Como poemas, não valem nada, mas meu texto de maturidade deve muito a eles.

OA: Seus primeiros livros foram publicados na década de 1970, correto? Hoje a publicação de um livro é bastante facilitada pelos novos meios de edição, como as edições sob demanda, mas há trinta, quarenta anos era bem diferente. Como era ser escritor e publicar naquele tempo não tão longínquo?

Jaime Prado Gouvêa: Tive a sorte de começar a escrever na época em que o Suplemento Literário do “Minas Gerais” foi criado. Como muitos caras da minha geração, então muito novos e extremamente pretensiosos — como é comum aos 20 e poucos anos que tínhamos —, pudemos aproveitar a editora da Imprensa Oficial (à qual o SLMG pertencia), para editar nossos livros. Mas editora de verdade eu só consegui quando Wander Piroli, já escritor consagrado, entregou meu livro “Fichas de vitrola” ao editor Pedro Paula Sena Madureira, então na Nova Fronteira, que o leu e o editou. Quatro anos antes, em 1982, esse livro tinha vencido o Prêmio Guimarães Rosa, da Secretaria de Cultura do Estado, o que não adiantou nada em termos de conseguir uma editora. O difícil — e que só consegui através da atitude do Piroli — é o livro chegar às mãos de um grande editor e fazer que este o leia. O negócio é complicado.

OA: Atualmente você é superintendente do lendário Suplemento Literário de Minas Gerais, criado pelo não menos mítico Murilo Rubião. E você teve a oportunidade de trabalhar para e com o Murilo, no Suplemento, também na década de 70 (confere?). Como foi participar “daquele” Suplemento, com Rubião ainda vivo? Como era conviver com ele? E como está sendo editar o SLMG nos dias de hoje? Sabemos que não é nada fácil manter um veículo literário…

Jaime Prado Gouvêa: Foi uma curtição. O Murilo nos dava liberdade para criar, a Imprensa Oficial facilitou a impressão de uma antologia com 22 (!) contistas novos (“Contos gerais”, 1971) — da qual participaram também gente que seriam hoje o que são Luiz Vilela, Sérgio Sant’Anna, Humberto Werneck, Duílio Gomes e até um contista que viria a ser Ministro da Justiça e membro do Supremo Tribunal Federal, José Francisco Rezek —, saindo daí a Geração Suplemento, que foi bastante comentada em certa época. Hoje, como superintendente do SLMG, tento manter a filosofia do Murilo de fazer um jornal de qualidade e de dar oportunidade a escritores iniciantes, como ele fez conosco.

OA: Ao ler “Fichas de vitrola & outros contos” (2007) e “O altar das montanhas de Minas” (2010) o leitor se depara com várias referências musicais, com quase odes à boemia e também com alguns episódios sombrios – referências aos anos de chumbo. Mas o que surpreende, mesmo, é seu estilo, que mistura de forma invejável simplicidade e objetividade com belas passagens líricas, poéticas. É até difícil encontrar escritores brasileiros que façam isso com semelhante competência – um deles é Flávio Moreira da Costa. Dito isso, perguntamos: quais escritores – brasileiros ou estrangeiros – que mais te influenciaram?

Jaime Prado Gouvêa: Esse negócio de influência, para mim, é um pouco complicado, pois minhas leituras sempre foram caóticas. Posso dizer que sempre gostei da literatura de Scott Fitzgerald, Julio Cortázar, Albert Camus e quetais. Se peguei algum cacoete deles, ótimo. Mas desconfio que não.

OA: Ainda sobre leituras: o que você tem lido nos últimos tempos? Tem acompanhado a produção contemporânea? O que acha da literatura produzida atualmente no Brasil?

Jaime Prado Gouvêa: Tenho lido muito pouco, talvez em virtude de estar editando o SL, e certamente por preguiça. Mas posso recomendar, com o entusiasmo, o novo livro de Sérgio Sant’Anna, “O livro de Praga”. Acho que a literatura do século XXI deverá ter um enfoque desse tipo.

OA: Outro questionamento “tradicional” da Outros Ares é o seguinte: você compartilha da opinião de que o Conto é um gênero menosprezado no Brasil? Se sim, arriscaria dizer por que isso acontece?

Jaime Prado Gouvêa: Posso ilustrar essa questão com um diálogo que tive com Pedro Paulo Sena Madureira, que editou “Fichas de vitrola” (contos) e, mais tarde, meu romance “O altar das montanhas de Minas”. Quando saiu este último, veio, sob o título, a palavra “romance”; na capa do “Fichas…”, não havia nada. Perguntei a ele por que não saiu a palavra “contos” sob o título. Ele, editor experiente, respondeu: “porque se escrever ‘contos’ na capa não vende”. É assim que o mercado enxerga o problema. E ainda é melhor do que livro de poesia, que aí não vem nem título, nem livro, nem poemas, nem poeta…

OA: Por fim, mais uma pergunta que fazemos – e continuaremos fazendo – a todos os entrevistados: fala-se muito de baixas vendas, pouco investimento nacional, pouca divulgação a escritores locais e baixa escolaridade – fatores que juntos ou separados formam o “problema” da literatura brasileira atual. Antes de tudo, a literatura tem problemas? Quais são os principais, na sua opinião, e quais seriam as soluções?

Jaime Prado Gouvêa: O problema é que no Brasil as poucas pessoas alfabetizadas leem pouco ou leem mal. A produção atual que chega ao SLMG através de colabores ou de concursos literários tem um nível muito baixo, muitos com sotaque de novelas de TV ou marcadas pela ligeireza e falta de cuidado da geração internet. A verdade é que muita porcaria está sendo editada. Gente demais e qualidade de menos. Ou sou eu que estou ficando velho e exigente. Pode ser.

Leia a seguir um conto do autor: Guardando roupa suja.