Doce perfume

Renato Tardivo

O perfume tem de ser sempre doce.

Seria esta uma prerrogativa para o exercício da profissão? Alguém, por acaso, já deparou com uma aeromoça sem perfume? Ou com perfume cítrico?

Eu não.

Quis dizer isso no momento em que ela sorria para outra passageira e, de passagem, nossos olhos se encontraram; instante fugidio, como em uma colisão: quando vamos apreendê-la, já foi.

Mas aquela vez eu acreditei que poderia ser diferente.

– O perfume tem de ser sempre doce?

Ela surpreendeu-se, mas, com a mesma elegância natural do coque que lhe arrematava o penteado, recompôs-se em seguida.

– Sabe, eu fico imaginando, todas as partes do seu corpo são assim, doces?

Ahn? – ela pareceu dizer, e não disse.

– É. Com o perdão da indiscrição, mas debaixo dessa calça colada à pele esconde-se uma carne doce? Por dentro da selva dos fios domados sob o chicote deste coque, respira-se um ar adocicado?

(Cara de brava; toda aeromoça, no fundo dos olhos maquiados, tem cara de brava.)

– A cara de brava também faz parte do treinamento?

Incrédula, ela arrefeceu.

(Toda aeromoça, com o avesso dos olhos, sorri um semblante doce. Exatamente como o perfume que usam.)

– Me diz, vai?

E só então, devido ao vácuo do nosso encontro (de olhos), mirei seus pés. Os saltos das aeromoças, via de regra em sapatos azuis-marinhos, são grossos; quase (mas sem chegar a sê-lo) grosseiros. Quase. Os dela não eram diferentes.

– Eu seria capaz de forrar o corredor deste avião com as palmas das minhas mãos – pétala sobre pétala – textura (vida) para os seus pés.

Mal terminei a frase, subi (ainda com os olhos) por seus largos – fortes – contornos e parei na linha da cintura.

– Se eu raspar essa colherzinha no seu ventre, então poderei sorver um caldinho doce assim? Eu faria isso enquanto você, melindrosa, desfizesse esse coque imponente – os sapatos ainda calçados. Cairia uma gota desse caldinho no bico do seu sapato, e eu, para não desperdiçar, lamberia tudo.

Seus olhos fundos enfim perderam qualquer expressão. E, mesmo sem conhecê-la, soube que jamais estiveram tão transparentes.

Eu queria que aquele instante me envolvesse para sempre. Cheguei a clamar para o avião despencar. Triunfaríamos sobre o tempo. Mas, como o tempo, o avião voava; o tempo, seu perfume.

A luz que sinalizava o chamado da passageira logo se apagaria. Suas pernas doces passariam por mim para não mais voltar. Eu ficaria, só, a contemplar pelo verso o quadril mais robusto do mundo, embora não o tivesse visto ainda.

– Se eu chafurdar no seu ânus, poderei então sorver a essência deste doce perfume?

Ela já não me olhava. Sem dizer palavra, desistira da comunicação que (com os olhos, sempre) tentamos estabelecer. Eu estava molhada. Meu marido, que acabara de voltar do banheiro, notaria um cheiro diferente quando, indiferente, eu me abrisse para ele. “Um cheiro meio adocicado”, eu podia ouvi-lo dizer…

Sou escritor, psicanalista e professor universitário. Estreei na literatura com o livro de contos Do avesso (Com-arte, 2010); sou professor universitário e pesquisador – atuo na interface entre a estética, a fenomenologia e a psicanálise. Escrevo no blog http://renatotardivo.blogspot.com. E-mail: rctardivo (arroba) uol.com.br

Leia a seguir Temporal.

Uma consideração sobre “Doce perfume”

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